Pretendo levantar uma hipótese, para que a avaliem: a mídia não teria hoje, para nós, o mesmo papel que a arte ou a religião tiveram em outras épocas, para outros povos, o mesmo papel que a mitologia, narrada por meio da poesia, teve para os gregos antigos, por exemplo? Não seria ela a fonte de todo o alimento ou, no mínimo, da maior parte do alimento espiritual consumido por nós e todos os nossos contemporâneos? Teríamos, continuando a comparação, no lugar de Homero, Hesíodo e outros poetas, diretores de cinema e televisão, escritores de novelas televisivas, escritores de grande sucesso comercial, colunistas de poderosos jornais e revistas, entre outros, desempenhando um papel semelhante ao papel desempenhado por aqueles poetas em sua época: fornecer o nosso alimento espiritual? Para aqueles leitores não habituados a este linguajar, é preciso dizer: quando aqui falo em alimento espiritual, não falo no sentido religioso, mas em um sentido bem mais abrangente: falo em cultura. Nosso corpo nutre-se de “pão e leite”; nosso espírito, de arte, filosofia, religião e ciência. O que quero dizer é que os que produzem a maior parte do alimento espiritual consumido em nossos dias talvez sejam estes diretores de cinema e televisão, escritores de telenovelas, autores de bestsellers, colunistas de grandes jornais e revistas, entre outros. Quero dizer, ainda, que são estes alimentos espirituais que nos formam culturalmente e que formar culturalmente não é pouca coisa.
Talvez, um dos problemas com muitos de nossos contemporâneos seja a não preocupação com a qualidade do alimento espiritual que eles consomem; muitos, na verdade, não têm à disposição os meios necessários para julgar a qualidade dos alimentos que lhes são fornecidos. Porque, para julgar-se bem um filme ou uma telenovela, por exemplo, precisar-se-ia de, pelo menos, um pouco de conhecimento técnico sobre teatro, dramaturgia ou cinema; precisa-se também, para julgar-se o aspecto moral, social, político ou epistemológico de uma obra qualquer, de um pouco de conhecimento filosófico ou científico. De um modo geral, para julgar-se bem qualquer criação cultural, necessita-se de, no mínimo, um pouco de conhecimento teórico, prático e histórico: é preciso conhecer teoricamente a obra que se julga, ou seja, conhecer teoricamente as técnicas envolvidas na concepção desta obra; é preciso conhecer na prática estas técnicas e também é preciso conhecer a história destas técnicas. Isto para examiná-las do ponto de vista formal. Porque devemos também examiná-las de um ponto de vista ético e político, no mínimo. Quero dizer que, para julgar-se bem uma obra musical, por exemplo, precisa-se conhecer um pouco de teoria musical, precisa-se ter alguma experiência prática com a música (tocar-se um instrumento, por exemplo, ainda que não se toque muito bem) e também conhecer a história da música: é necessário saber, no mínimo, que há uma diversidade muito grande na produção musical de todos os tempos e de todos os povos – hoje em dia, diga-se de passagem, as pessoas de fato ignoram a maior parte da produção artística realizada atualmente e em outras épocas, conhecem apenas o que é mais recente e o que obteve grande sucesso comercial.
Mas os nossos contemporâenos não param para julgar o alimento espiritual que consomem: assim como, muitas vezes, devido ao rítmo agitado da vida que levam, não param para apreciar, julgar o gosto do alimento físico que consomem. A importância disso tem sido enormemente subestimada.
Portanto, se a mídia desempenha, em nosso meio, o papel de fornecer o nosso alimento espiritual, é preciso atentarmo-nos para a qualidade do alimento que ela nos fornece, para que não adoeçamos. Quem muito ingere refrigerantes, fast food, entre outros alimentos, pode desenvolver doenças que levam até mesmo à morte; e com quem muito assiste a filmes hollywoodianos e telenovelas, muito ouve as músicas comercialmente mais bem-sucedidas e muito lê a revista Veja e outras publicações semelhantes, o que acontece?